terça-feira, março 18, 2008

Sonho





O homem que trabalha nem sempre é um homem esclarecido.
Este homem tinha uma função simples. Montar barreiras. Barreiras que impedissem aquela criatura de invadir o espaço que era dos homens, pois apenas os homens se sentiam no direito de invadir o espaço do adversário. Essa crença dava-lhe uma falsa noção de segurança, de controlo sobre a criatura. Sentia-se dominador, como só os homens gostam de se sentir.

Aquela criatura fascinava-o, como a tantos homens, de uma forma que ele não sabia explicar. Sem compreender não havia como.
Sabia apenas que tinha este trabalho mas não sabia bem porquê.
A sua função era perigosa, quase suicida. Isso ele sabia também. E se não sabia, devia saber.
Quem no seu perfeito juízo se dedicaria a tal tarefa?
Mas a sua tarefa, a tal que era simples, era também pobremente executada. A montagem das barreiras deixava evidente uma de duas coisas: ou o homem que as montava era inexperiente ou queria simplesmente desafiar a criatura.
Em todo o caso o homem podia ser apenas mais um louco.
Enloquecia-o, sim, aquela paixão pelo risco, sentia-se assaltado pela euforia que o perigo lhe trazia. O pânico instalava-se e o homem esfregava nervosamente o polegar nos outros dedos enquanto aguardava.

Solidário com a sua espera, estava aquele lugar.
A cidade, calma como nenhuma cidade consegue ser, deixava no ar o silvo do vento nas árvores, o crepitar das espigas que se tocavam. A luz do entardecer dourava as searas que cercavam o casario, e estas iam fazendo a vontade do vento, ondulando ao seu sabor. O cenário parecia o de um qualquer duelo ao entardecer, desses que povoavam o imaginário daquele homem, que os havia visto vezes sem conta na televisão quando era criança.
Mas este não se tratava de um simples acertar de contas, de uma vingança cega ou simplesmente de repôr a honra de alguma família caída em desgraça. E não se esperava que no final caminhasse em direcção ao pôr-do-sol.
Os motivos que se escondiam atrás deste eminente confronto eram outros.
Denunciavam a tentação pelo desafio, pelo risco que se sobrepunha ao conforto daquilo que já se conhece. Daquilo que já se tem.
Motivava-o a reacção da criatura assim que se visse livre. Ainda que ele apenas pudesse adivinhar a sua reacção. Sabia-a imprevisível, mas pensava nela.
Ele apenas podia pensar nela. Na inesperada reacção. E esperá-la...
Mordia-lhe as ideias aquela forma estranha com que a criatura o deixava encurralado. Logo a ele que tinha por função encurralar!
No fundo, toda aquela situação era perversa. Ao invés de se limitar a despertar-lhe os desejos um por um, despertava-os a todos de uma só vez...sufocando-os de seguida.
O homem deparou-se assombrado pelos seus desejos. E só aí percebeu.
Não há satisfação no desejo. Daí a inevitabilidade do confronto.

O homem ofegava na face do perigo. E na face do perigo apenas se lembrava de uma frase que lhe vinha ao pensamento: “os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas”.
Ansiava ver naquela criatura outra coisa que não fosse o seu fim.
Acreditava que não podia ser apenas esse o seu significado. Que inglório fim, perecer às mãos do desejo.
E somente quando a indomável criatura se revelou o homem percebeu o seu verdadeiro significado.

Afinal, o trabalho daquele homem não era montar barreiras.
Era sabotá-las.




Imagem: autoria, Geno;
panorama: (no topo do site)
"...". autor, Geno;


Lizz Wright - Dreaming Wide Awake - "Dreaming Wide Awake"